ÀS AVESSAS
- José Alexandre Saraiva
- 24 de out. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 11 de dez. de 2023
Numa palavra, diria que minha infância em Labiata (saí de lá aos 16 anos) foi além do que me era dado esperar entre a terra e o céu: xaxei roçado, fui juiz de futebol, malhei judas, toquei na Banda, vendi castanha assada de caju na rua, fui sanfoneiro-mor nas festas juninas da escola e projecionista do “Cinema do seu Severino”. Desta última experiência, guardo um momento que, mesmo jurando que é verdade, até hoje poucos acreditam: a involuntária projeção invertida de um filme em preto e branco sobre os vikings – aqueles marinheiros bárbaros e conquistadores da antiguidade –, já assistido até a exaustão pelo povo da cidade inteira.
Nas duas últimas tentativas de exibição, nem sequer um morador apareceu. A própria distribuidora do filme, sediada no Recife, esquecera de cobrar a sua devolução. Deu-se, entretanto, que, no auge de uma das festas de fim de ano, seu Severino, que morava na vizinha Cupira, pediu-me para encontrar um jeito de atrair o público da mata com uma exibição daquela surrada película. Eu deveria fazer tudo sozinho e antes da Missa do Galo, o momento mais esperado da véspera do Natal. As tarefas compreendiam varrer o cinema, vender e eu próprio receber os ingressos, que eram numerados e picotados no meio, ficando uma metade com o cinéfilo e a outra comigo para juntar ao borderô. Em compensação, eu ganharia a metade da arrecadação. Claro que topei.
Assumido o compromisso, logo pela manhã afixei na frente do Bilhar do Toinho vistoso cartaz do filme. Em seguida, fui à loja de variedades do seu João de Ângela, onde nos dias de feira eu tocava sanfona acompanhado de Zé de Sula no violão, e lá pedi para anunciarem no alto-falante a “sessão especial” da produção ítalo-espanhola “Erik, o Viking”, com Gordon Mitchel e Giuliano Gemma. No script do anúncio, enfatizei “cenas espetaculares com navios e brigas de sangue e morte na terra e no mar, piratas valentões com espadas e índios furiosos armados de bodoque, flecha, machado, facão, estrovenga” e o diabo a quatro.
À noite, sem o comparecimento de um só morador da cidade, sozinho no cinema, eu próprio vendi os ingressos e orientei os matutos a tomarem seus lugares nos bancos de baraúna – desses onde cabem 6-8 pessoas. Analfabetos na mais extensa acepção da palavra, ali se acomodaram para o momento mágico do primeiro filme de suas vidas.
Para eles, regressar ao sítio ou ao engenho depois da Missa do Galo com um retrato tirado pelo retratista Natalício no coreto da praça já seria acontecimento sensacional, digno de comemoração familiar.
Sala lotada, chaveei por dentro a porta do cinema, isolei-me na cabine, apaguei as luzes e acionei a velha Bell & Howell 16mm. Feito isso, sentei-me com as pernas cruzadas numa esteira de piripiri e iniciei a leitura de um gibi do "Zé do Caixão".
Quando eu estava para emendar o segundo rolo do filme no primeiro, prática usual para não interromper a exibição, olhei para a tela pelo buraco da cabine, a fim de conferir a qualidade da imagem. VigiMaria! Tudo estava de trás pra frente! E mais: o primeiro rolo do filme que deveria estar em exibição na verdade era o terceiro, que eu esquecera de rebobinar na última projeção (fazia três meses). Não poderia ser diferente: a projeção estava de ponta-cabeça! Que susto! Começou com o “FINE”. O mais incrível é que o silêncio reinava absoluto na sala. Os espectadores extasiavam-se emudecidos com o que viam! Os demais rolos do filme também não haviam sido rebobinados, de maneira que a última cena passou a ser a primeira. Como o espetáculo tinha que continuar, não pensei duas vezes: literalmente, deixei rolar!
Naquela mesma noite, o amigo Milton de Dudé, o maior criador e contador de estórias fantásticas de Labiata, deparou com animado grupo de matutos conversando num beco, perto da cadeia, para onde tinham sido levados pela curiosidade de ver de perto um soldado de verdade, fardado e armado. A seu modo, Milton traduziu assim o comentário que teria escutado do mais falante:
“... Rapai, cumeça cum um defunto qui tava caído numa preda na beira do mar, entonce ele fica curado e avoa discosta e ligero cuma o cão pra banda de riba da ladêra chei de galego armado, aí um baibudo cum chifre de boi num gorro de ferro arranca uma ispada tinino de nova de dentro do bucho do homi qui avuô nele direto da preda do mar, adispôi todo mundo sai de arré correndo abestado numa pissiga da mulesta pelo mato, inté chegá num arraiá...”
José Alexandre Saraiva








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